Carta para minha filha

Conselheiro Lafaiete, fevereiro de 2000

Essa carta foi escrita para minha filha

Desde que você se criou em mim que espero por esta oportunidade de nos falar, não como mãe e filha, mas como amigas e cúmplices, o que sempre esperei para o nosso futuro. E, este futuro chegou! Chegou muito rapidamente e, apesar dos atropelos e de parecer que as coisas ficaram esquecidas, me recordo de toda nossa caminhada, lado a lado, mesmo quando você só era uma certeza de vida.

E tinha certeza que você era VOCÊ: minha menininha. O quão linda! Não foi outro o comentário dos médicos, assistentes e de todos os que foram lhe ver. Realmente, um bebê cheio de adjetivos e exclamações.

Rapidinho, rapidinho fomos nos inteirando uma da outra e, quando menos esperava, já sabia lidar com suas necessidades, suas manhãs, suas dores… E quantas vezes estivemos suprindo-nos de carinho. Por muito tempo a minha vida de viu tolhida de qualquer tipo de devoção e quando você apareceu vi-me repleta, tal era a necessidade de amor que você transferia para mim. Recordo-me das minhas noites em que, sonolenta, ia ao seu chamado para supri-lhe a fome. Mesmo com o peso do cansaço do dia, meu prazer em lhe atender era inexplicável. Sabia que receberia muito mais de você e que quem “chamava”, na realidade, era eu mesma. Sua mãozinha delicada ao encontro do meu peito foi meu alento

por muito tempo. E só tenho a lhe agradecer. Não fosse sua presença e teria me sucumbido a uma obscuridade ensimesmada em um mundo alheio a tudo e a todos.

Recordo-me dos primeiros passos, das primeiras palavras, mas, o que mais me comoveu foi quando você descobriu sua possibilidade de tocar e alcançar objetos. Estava com os atropelos do serviço doméstico quando parei e vi sua árdua tentativa em rocar seu ursinho amarelo (Amarelinho, lembra?) que ficava pendurado no carrinho. Sua persistência concluiu a tarefa e um sorriso farto refletia a vitória conquistada.  Minha emoção chegou quase a se equiparar ao momento exato do seu nascimento que, para mim, é inigualável: como um toque em Deus!

Dias após dia e você foi superando as dificuldades e aprendendo a vida. Sempre saíamos para um passeio, meio que rápido, já que minhas tarefas de “dona de casa” eram uma verdadeira prova de obstáculos. Dentro de todas as tarefas, sempre conseguia arranjar um tempo para irmos ao parque, ou à praça, ou ao clube.

E, então, chegou o dia do 1º aniversário, do 1º natal, do 1º carnaval, do 1º filme no cinema, da 1ª ida ao circo, ao Disney on ice, ao Mac Donald’s… Muitos 1ºs que já se transformaram em 11º.

Dediquei-me com esmero às suas necessidades: a escolha certa do pediatra, da 1ª escolinha… escolhas que seriam definitivas, portanto, sem opções de falha. Mas, parece que consegui esta tarefa. Vejo, hoje, o reflexo de muitas destas escolhas que somos obrigados a tomar a tempo e hora certos. Muitas delas, às vezes, poderiam parecer extremistas, porém, certamente necessárias. Tenho para mim que a minha necessidade em manter minha identidade, ao separar-me e separá-la de seu pai, foi a maior agressão que eu poderia oferecer a você. Porém, analisei por muito tempo a realidade desta situação e, se tivesse outra saída, por certo, a teria tomado em detrimento de sua estabilidade. É que, realmente, não estaria sendo sincera comigo mesma nem com você se continuasse a viver sem minha autenticidade. Como poderia fazer de você alguém respeitável e respeitadora baseada numa farsa que era eu mesma?  Peço perdão por falhar, por não dar conta de que vivia pelo outro e que sabia disso e me omiti. Foi preciso crescer, em mim mesma, para ter coragem de abandonar meus sonhos, meu castelo… É que ele foi construído na areia, sem nenhuma base. E é baseado em tudo que aprendi, na vida, nestes idos 41 anos, que estou, aqui, palavra-a-palavra com você. Quero lhe embasar a vida oferecendo-lhe minha maneira de ser, sentir e absorver tudo que temos às nossas mãos e, que nem sempre, nos damos conta. Quero mostrar-lhe a beleza que meus olhos veem, os aromas que meu olfato absorve, os sons que meus sentidos percebem, as palavras que tocam minh’alma e fazem transbordar-me até não mais me conter. Porém, não quero lhe impor nada! Quero aumentar a bagagem do seu aprendizado sem, contudo, tirar-lhe a identidade. Quero fazer você ver a beleza que enxergo na margarida sem ofuscar a beleza que você vê nas outras flores, quero fazê-la perceber, não só a beleza, mas também o perfume que exala delas ao longo do caminho. Quero inteirá-la da grandiosidade das músicas clássicas, da melodia que se absorve de um acorde de piano, violão… sem, contudo, desfazer das suas músicas e cantores prediletos. Quero mostrar-lhe que a vida é feita de coisas boas e belas, que somos nós mesmos que a adulteramos com nossas falhas. Que tudo que nos acontece, de bom ou mal, é reflexo de nossas próprias atitudes. Que, muitas vezes, quando estamos nos sentindo tristes e incapacitados, estamos, apenas, sendo colocados à prova para nosso próprio crescimento interior. Que a vida nos impõe barreiras para podermos ultrapassá-las e seguir em frente. Que sofrer por amor é insensato, mas não sofrer é, totalmente, antirracional. Quero mostrar-lhe que beleza externa é apenas um adjetivo (bom, é claro!), mas que não deve ser tomado como nosso parâmetro. Que os vincos que nos aparecem, no rosto, devem ser respeitados, pois eles são os vínculos que a vida nos deixou no decorrer da nossa caminhada. Quero ensiná-la e também, aprender. Com você terei, novamente, a oportunidade de enxergar com olhos de mocinha, olhando pelos seus horizontes. Quero ver e sentir suas belezas e aumentar meu aprendizado. Quero ser parceira, “pro que der e vier”. Quero as oportunidades que me escaparam, na juventude, quero “curtir” o seu tempo. Quero mostrar-lhe os caminhos que podem ser seguidos e os que são totalmente proibidos. Que a mais vilã de todas as palavras é a mentira, e que existem mentiras e MENTIRAS. Que mentiras premeditadas não merecem perdão, nunca! Elas humilham nossa condição de seres capazes. Mas, quero que você tenha a consciência e o entendimento da minha oferta e que você veja a realidade, tal qual ela é, sem tabus nem preconceitos. Quero lhe ensinar a caridade e a igualdade. O respeito a tudo e todos os conceitos, mesmo que lhe pareçam contraditórios. Saber ouvir, não só falar. Saber ser gentil, mesmo quando não o são conosco. Mas, também, saber se defender e se impor quando lhe faltarem o respeito e compreensão. Quero lhe ensinar que nem sempre alguém mais velho que nós mesmos são os “donos da palavra”, às vezes as pessoas se equivocam e querem nos impor conceitos ultrapassados e sem sentido. Quero ensiná-la a ter autenticidade e ser capaz de se “virar” sozinha. Quero ensiná-la a ter cautela com o desconhecido, mas não se deixar enfraquecer e se acovardar diante situações difíceis. Quero ajudá-la a desvendar os mistérios da sexualidade e compartilhar c, contigo, a “virada” para mulher. Quero lhe dar direito a questões sem nenhum constrangimento.

Quero tanto a você e de você!

Esta deveria ser uma dedicatória ao seu presente de 11º aniversário, mas não me contive e, parece, que ficou mais longa que um discurso. Talvez você entenda, este contexto, talvez não. Esta mensagem é para ler em outros aniversários, ou quando estivermos distantes uma da outra… Quero deixar-lhe minha marca, ser-lhe mais que mãe.

Quero lhe ensinar a observar o mundo da leitura, quero ensiná-la a trilhar pelos caminhos dos versos, rimados ou não, a fazê-la capaz de sentir o “sentido” do poeta, do escritor.

Silvânia, 41 anos, mãe de uma filha de 11  


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