A vida começa depois do carnaval

Belo Horizonte, 22 de Agosto de 2022

Quando fui convidado para escrever sobre a paternidade fiquei surpreso por me considerar novo na função, além de achar estranho escrever sobre coisas que raramente falo para alguém, mas o convite me fez relembrar do meu renascimento para a vida, das grandes mudanças, restrições, tristezas e muitas alegrias que vieram no pacote.

Na gestação, eu e Herica não tínhamos muitas condições de investir em grandes alegorias, e fizemos tudo com muita simplicidade, porém cheios de expectativas, será um craque de bola, uma linda cinderela, ou qualquer outra fantasia, e assim os dias foram se passando.

Apesar da grande expectativa, no fundo do meu coração haviam muitas dúvidas e preocupações, na época tanto eu, quanto a Hérica éramos autônomos, e a insegurança financeira consumia nossas noites de sono, além do mais, havíamos passado por um aborto poucos anos antes, e todo aquele cuidado era pouco.

Ainda faltavam aproximadamente dois meses para o nascimento natural e como de praxe fomos fazer o ultrassom, eu, Nêga e minha sogra, chovia muito o que deixou o tempo incrivelmente escuro e triste, o médico parecia estar meio perdido, e mesmo sem nos falar ou tentando nos blindar sobre as reais condições da nossa filha, o silêncio daquele momento, muito claro dizia.

Saímos do consultório e como se o mundo estivesse conspirando contra mim chegamos em casa, e para piorar a situação uma árvore tinha caído sobre nossa casa, a telha e forro foram destruídos, e sem tempo para pelo menos fumar um cigarro e tentar digerir o silêncio falante do consultório, eu e minha sogra começamos a retirar toda a bagunça, entre galhos, folhas, gotas de chuvas e raiva, as lágrimas e o suor ali escorriam, terminamos todos cansados e fomos todos dormir.

No dia seguinte do retorno ao consultório, foram feitos alguns exames e o médico encaminhou Herica à maternidade, que segundo ele era para ter um maior cuidado e apoio médico, como tínhamos trabalhos para entregar e realizar na cidade em que morávamos, foram somente Herica e minha amada sogra.

Naquela mesma noite, do mesmo dia 08 de fevereiro de 2018 de forma antecipada houve o parto, eu estava em nossa casa e recebi a noticia mais extraordinária da minha vida, Antônia nasceu, tomei umas três ou sete cervejas que na nossa geladeira ainda tinha, e vendo o jogo do Galo que por ironia pro afogados perdia, terminei e fui me deitar, doido que amanhecesse para viajar rumo ao encontro das minhas “neguinhas”, quando acordei, bem cedo liguei para meu irmão João que morava numa cidade bem próxima, que logo se prontificou a me acompanhar até a maternidade.

No caminho, rumo ao hospital, fomos cheios de alegrias, até que o meu telefone tocou, era a tia Gleice, um pouco chorosa me disse em poucas palavras, que tinha nascido uma linda menina, mas infelizmente sem muita saúde.

Naturalmente, fiquei chateado e ao mesmo tempo ansioso, na chegada ao hospital a Gleice veio me abraçar e me contou sobre a real situação, disse ela: vá falar com Herica, ela está extremamente chateada, querendo pular do terceiro andar. Antônia tem trissomia 21, naquele momento eu renasci, como se Deus despejasse todas as purpurinas de amor, serpentinas de alegrias e principalmente lantejoulas de esperança lá fui eu, ainda no corredor junto ao João, choramos muito, me lembro de que até questionei sobre as provações de Deus, e no mesmo momento comecei a sorrir, de tanta confusão e euforia.

A trissomia 21, popularmente conhecida como Síndrome de Down é uma alteração genética causada por uma divisão celular atípica, acarretando no comprometimento intelectual e motor, pórem, os estímulos adequados, confiança e dedicação possibilitam a estes indivíduos um desenvolvimento saudável e contínuo.

Não podia mascarar a realidade, principalmente quando vi Herica naquela situação, começamos a conversar e eu disse que estaríamos juntos nas folias, alegrias ou nas quartas de cinzas, e fui pela primeira vez ver a razão da minha vida, pouco sabia sobre a trissomia 21, muito menos o que seria ser pai, mas quando olhei pela incubadora e vi aquela menina tão pequena, sensível e quietinha, e apesar de saber que aquele coraçãozinho não batia com tanta harmonia, logo passei a unha sob os pés, Antônia recolheu as perninhas, e toda a tristeza que ainda sentia foi embora e percebi que com esforço, fé e amor, poderiam sim, sambar, independente do samba, enredo ou bateria.

Desde então, daquele primeiro dia de carnaval de 2018 me sinto grato por tudo que vem acontecendo comigo desde o nascimento da minha filha, o respirar, olhar, andar, cada processo diário só me fortalece e me aproxima dos meus sonhos e agradeço a Antônia, a me esforçar em ser uma pessoa cada dia melhor, minha vida, minhas conquistas e alegrias se devem a ela, a paternidade preencheu todo o vazio que na minha vida existiam.

Thiago Eustáquio, 40 anos, pai da Antônia de 4 anos.


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